Quando meus filhos eram pequenos, reencontrei-me com os contos de fadas, que tanto adorava ler quando criança. Lia para eles e os redescobria repletos de símbolos que sinalizavam os arquétipos e mitos da humanidade, pelos quais eu começava a me interessar na época. Quando adolescente, na universidade, era uma leitora ávida, num movimento racional. A redescoberta dos contos de fadas me levou a um outro tipo de leitura, mais intuitiva, emocional, prazerosa. Não aumentava a bagagem erudita, tocava o terreno da poesia, do encantamento. Comecei a me relacionar com a leitura de outro modo. Hoje, já não me interessa ler para mostrar erudição e conhecimento.
Mas, num estudo sobre os aspectos do mito de Afrodite, construí uma analogia com o conto Branca de Neve e os sete anões. Lembram-se da madrasta da moça e seu espelho mágico, que ela consultava para que fosse confirmada sua beleza, até que um dia o objeto afirmou que havia outra mais bela: Branca de Neve. A madrasta enfureceu-se e passou persegui-la. Essa parte do conto simboliza o aspecto sombrio de Afrodite: o ciúme de outra mais bela ou supostamente mais bela. Na realidade, a madrasta de Branca de Neve, por mais que pareça a tal, não é, pois precisa que um espelho lhe diga o quanto é bela. É a típica mulher insegura que necessita de uma corte: família, marido, os amigos, os filhos, enfim, espelhos lhe digam o quanto é bela. Tal insegurança se converte em ciúme diante de outra supostamente mais bela.
A sombra é o material psicológico esquecido no quartinho dos fundos e tende a criar situações factuais para que possa ser vivenciada. Por mais incômodas que pareçam, tais situações são oportunidades de conhecer o lado sombrio, o que é difícil, pois somos formatados socialmente para uma relação maniqueísta com o bem e o mal. Difícil quem reconheça a sombra em si e não caia na armadilha de projetá-la nos outros. Tocada, reconhecida e aceita a sombra, limpo o quartinho dos fundos, podemos abrir a janela para uma vida mais plena e amorosa realmente, em que nos aceitando aprendemos a aceitar nossos semelhantes.
Mulheres que trazem Afrodite sombria, não raro, internalizaram o padrão na família com a mãe ou provedora. Não significa necessariamente que tiveram relação difícil com a mãe, pelo contrário. O processo ocorre a nível oculto, disfarçado. É a mãe a não permitir que a filha cresça, se torne mulher, por ciúme, por ter que disputar espaço com outra mulher mais jovem. A filha, por sua vez, para agradar a mãe, torna-se eterna criança, exila a Afrodite do bem no quartinho dos fundos e tende a repetir o processo com a filha no futuro, caso se torne mãe de uma menina, ou na relação com outras mulheres. Mulheres que são mães de meninas devem prestar redobrada atenção aos fios ocultos que regem a relação com suas filhas: os ciumes velados, as pequenas disputas. O embate entre a madrasta e Branca de Neve ocorre quando esta se torna mulher. Atualmente, é raro que mães literalmente matem ou exilem suas filhas. Há outros meios de se vingar da Afrodite da filha, e o mais comum é não permitir que se tornem mulheres. Preferem as filhas eternas meninas que no futuro carregarão a mesma insegurança e ciúme velado, com grande dificuldade para se individualizarem, sendo excessivamente permissivas nos relacionamentos e necessitando sempre de um “espelho” que lhes diga o quanto são belas.
Reparem a diferença entre a madrasta e Branca de Neve: enquanto a primeira depende de um espelho mágico para afirmar sua beleza, a outra deve sobreviver em condições adversas. Dito à madrasta pelo espelho mágico que há outra mulher mais bela, ela expulsa Branca de Neve do reino e contrata um caçador para que a mate e traga seu coração como prova da eliminação da rival. No coração e na pureza de sentimentos está a fonte da beleza de Branca de neve. Por isso a madrasta o quer. O caçador se comove com Branca de Neve e não a mata, a deixa sozinha na floresta encantada onde ela terá que sobreviver em situação adversa, até encontrar pouso na casa dos sete anões onde passa a viver e cuidar dos novos amigos. Mas, ela não se livra do ciúme da madrasta que descobre a rival e a persegue.
Notem que a madrasta tem o reino, o espelho mágico, enquanto Branca de Neve vive de modo simples, exilada na casa dos anões. A madrasta “tem”, enquanto Branca de Neve “é”. A beleza da madrasta vem de fora, do espelho, do reino, enquanto Branca de Neve vive de dentro para fora e por isso plena e feliz mesmo com anõezinhos da floresta, mesmo em situação anômala. Por isso o ciúme da madrasta que se dispõe a assumir o disfarce de uma bruxa horrenda e ir até o coração da floresta encantada oferecer uma maçã envenenada para Branca de Neve.
No final da história, a madrasta é consumida pelo ciúme, destrói-se. Branca de Neve morde a maçã e adormece. Vivencia a maldição. Cai em estado de inconsciência de si e do que a cerca. Até que vem o príncipe encantado com quem realiza o casamento alquímico e desperta.
Nesse ponto, o conto mexe com a cabeça das mocinhas que passam a esperar o príncipe encantado em carne e osso como se ele fosse a solução de seus problemas. Um príncipe encantado ao lado, nada mal, mas solução de problemas, não! Transformar o príncipe em espelho mágico é para a madrasta, a Afrodite sombria, e não Branca de Neve que na realidade realiza o casamento alquímico em que integra seus princípios masculinos e femininos, por isso desperta. Não necessariamente com um príncipe de carne e osso.