sábado, 19 de outubro de 2013

A arte da perda

Perder é morrer. Cada perda é uma morte.  E uma arte. Fico pensamento no “day after” de alguém que larga tudo, pelo motivo que for. E agora? O que fazer com o tempo de sobra. Ponto crucial. Antes de perder, vale discernir o que se pode perder e o que não se pode perder, nunca. Sinceramente, há o que não é bom perder tão cedo. A capacidade de raciocinar sobre os próprios atos, por exemplo. Tipo: o que estou fazendo, onde me levará, é bom para os outros, para mim. Porque faço isso e não aquilo. Porque largo isso e não aquilo. Tipo de raciocínio a ser cultivado, cuidadosamente. Um bonsai íntimo. Algumas coisas é bom perder: eu adoro perder quilinhos extras, por exemplo. Gosto muito. Mas não gosto de me perder por aí. O ponto é saber o que se deve e não deve perder.

Algo que perdi foi a chance de lidar com um sujeito o tempo todo dentro de casa de pijamão, chinelão, barba por fazer, reclamando do sistema social e vítima de alguma conspiração mundial. Tenho um filho e poderia ser ele, mas  perdi a chance quando meu filho, feliz da vida, passou no vestibular e hoje frequenta a universidade com todo gás do mundo. Tive meu garoto solar com menos de vinte anos de idade e hoje parecemos irmãos, fisicamente. Meu filho é totalmente ajustado ao sistema e sabe muito bem as falhas deste sistema mas não joga a toalha. Faz sua parte, mínima que seja. Não mensuro o tamanho da minha alegria. É muita. Alegre por não ter que lidar com um rebelde cavernoso. Sinto-me poupada. Tenho impressão que escolhi me livrar disso.

Mas não perdi de vista o rebelde cavernoso. Um dos melhores amigos do meu filho é rebelde sem causa. Vi aquele menino nascer e crescer; e enquanto um vai para um lado o outro toma o rumo oposto. Acompanho a tragetória junto com a mãe dele, e amiga, a quem resta dizer: olhe o lado bom, em tudo há um lado bom, acredite. Palavras, muitas vezes, são ridículas e incapazes de tanger uma situação.

Sim, baby, o mundo não é como gostaríamos que ele fosse e aí está a magia da coisa. Estamos aqui para percebermos mais do que o próprio umbigo ou os próprios reflexos. Tipo, sair da casca, bicar e romper a própria membrana para enfim um contato real com o mundo. Talvez liberdade seja isso. Estamos aqui num exercício de liberdade. Confio inteiramente nesta proposta: liberdade. Não é um termo supérfulo na linguagem humana. Não pode ser. Só que a liberdade pode ser multifacetada e não se parecer com as definições dos dicionários ou com o que acreditamos ser liberdade. Possível até para os fisicamente presos. E pode não haver nenhuma liberdade nos aparentemente livres. Sutil mesmo.

Entre meu filho e seu melhor amigo, a principal diferença é que, enquanto um é muito tranquilo e cordato, o outro parece que nasceu com o rei na barriga. Um rei que mexe e regurgita. Não julgo, constato com a maior isenção que me é possível. Vejo o rapaz com dedo em riste, a dizer a todos o que devem ou não devem fazer. O que devem ou não devem ser. A dar pitacos no caminho evolutivo alheio. Nem precisa dizer quem é quem. O desajustado quer ajustar todo mundo mas não se ajusta. Não sabe onde está a própria camisa, não sabe fritar um ovo para se alimentar. Verdadeiro reizinho. Para poder sobreviver, a primeira coisa a ser feita é baixar o dedinho. Ficar mais calminho. Colocar uma máscara bem bonitinha para pelo menos arrumar alguém para ajudar a suprir a inapetência para lidar com questões materiais. 

Quanto mais desajustado mais orgulhoso. Ou quanto mais orgulhoso mais desajustado. Não sei o que decorre do que. De qualquer modo é uma tragédia pessoal não só para ele, para todos que o cercam. A menos que ele se lance no mundo (sempre é tempo) para quebrar todas as pedreiras possíveis e enfim se ajustar de um modo ou de outro. Ajuste não pode faltar. O que não se ajusta é marginal que está nos presídios, nos manicômios ou vive da esmola do governo ou da esmola alheia. E, incrível, quanto mais desajustado mais orgulhoso. Talvez para suprir a falência existencial, reveste-se de uma sabedoria pegajosa e viciada. Surge a necessidade de se sentir superior aos demais. Perdeu tudo ou nunca conquistou nada mas não perde o orgulho, a superioridade, a vaidade negativa, ainda em estado tão primitivo, tão óbvio. 

Me dá frio na espinha pensar que poderia ser meu filho. O que eu faria se tivesse no lugar daquela mãe que conheci na adolescência. Complacência não significa amor. Passar a mão na cabeça e achar tudo muito bonitinho não é amor, é, ao contrário, um profundo desamor, uma profunda desídia. O que pode ser feito, então. O tempo, ah, entregar ao tempo. 

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