domingo, 2 de outubro de 2011

Justiça, um arcano

(tarô: arcano Justiça, por Salvador Dali)

Nas missas que ele celebrava, impedia a entrada de prostitutas, separadas, mães solteiras, mulheres que não passavam pela porta estreita da sua perspectiva moral. Mesmo claro o versículo bíblico Mateus 22:37-39: "Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. 


Ele morava numa pequena cidade de 23 mil habitantes onde era pároco há mais de vinte anos e sua postura intolerante era bem aceita entre os fiéis. Com sua autoridade religiosa, o padre disseminava a intolerância e não o amor.

Quem é perfeito, afinal?! A imperfeição existe, incomoda, há quem queira mesmo a perfeição. E pule a etapa da aceitação. A perfeição produto da não aceitação velada de si acarreta a não aceitação do outro. Quadro que gera a intolerância. O exercício da aceitação e da tolerância é dos mais difíceis, mesmo entre aqueles de quem se poderia esperar uma espiritualidade mais desenvolvida. O cultivo da perfeição moral declinando-se a etapa da aceitação e da tolerância pode gerar desvios. Daí mulheres separadas, prostitutas e mães solteiras não poderem frequentar as missas celebradas naquela pequena cidade, numa expressão contrária ao perdão, à compaixão, ao amor genuíno, ao cristianismo, afinal.

Era de se esperar que uma mulher "proscrita" ao chegar na porta da casa de Deus fosse aceita. Pudesse ao menos entrar. "Atire a primeira pedra quem nunca pecou", acho que já li isso em algum lugar. Mas não. E a população da pequena cidade fazia coro ao padre, numa gana de vingança. Não podiam atirar pedras, hoje em dia pelo menos não se pode atirar pedras, então cerravam os portões. E isso não é exclusividade de séculos passados, trata-se de caso recente. Só que hoje temos a imprensa, leis mais efetivas e algumas pessoas capazes de questionarem.

Tanto que o padre da paróquia a que me refiro está afastado de suas atividades religiosas. É, está. Cumpre pena no anexo da delegacia de polícia local, condenado à dez anos de reclusão depois de haver recorrido às mais altas instâncias da justiça humana. Por assédio moral às mulheres? Podia ser, mas não. Não por assédio moral às mulheres, por coisa bem pior. E, ironia do destino, foi condenado por uma das mulheres impedidas por ele de entrarem na igreja por ser separada.

Escrevo para que as palavras me conduzam a alguma compreensão, na qualidade de mãe, de tia. Resta-me escrever. O que faz uma pessoa que frequentou um seminário, teve preparo intelectual, religioso, não ter habilidade para vencer uma inclinação capaz de fazer um mal irreparável a um ser humano? Um mal que repercutirá uma vida inteira e, quem sabe, até adiante. O que faz um religioso entre 60 e 70 anos de idade praticar repetidas vezes atos libidinosos com um adolescente que era coroinha de sua paróquia? E que certo dia apareceu em casa com dinheiro e inquirido pela família de onde vinha o dinheiro detalhou o ocorrido. A família imediatamente foi até um médico que examinou o adolescente e comprovou por meio de laudos o abuso sexual. O padre praticou o ato às escâncaras, fiando-se na sua autoridade em detrimento de pessoas humildes. Foi dada queixa na polícia, o ocorrido era para não dar em nada. Mas a esta família humilde, juntaram-se outros adolescentes, ex-coroinhas, e um seminarista que também sofreram abusos sexuais do mesmo padre, que era "escolado" nesta prática e nunca havia dado em nada mesmo. Até que deu. A família do menino enfrentou a paróquia inteira. Viu-se humilhada, rechaçada, teve que se mudar de cidade. O padre foi processado, condenado e cumpre pena, repleto de regalias em comparação aos outros presos.

Foi feita a precária justiça humana. O que é mesmo justiça? É dar a cada um o que lhe pertence na medida de seus atos. Como medir um ato desses? As reais consequências. Muito ou pouco foi dado ao padre? Analisando pela perspectiva de que não era para dar em nada, foi dado algo. A reclusão, o vexame, o abalo da autoridade eclesiástica. Dez anos de uma prisão cheia de regalias pode parecer pouco, mas já é alguma coisa. E ainda o exemplo para que vozes de outras vítimas não se calem diante de crimes desta natureza.

Porque o padre tem regalias e não é tratado como um preso comum? Questionam-se os outros presos ávidos por "pegarem" o religioso. O padre é acobertado pelos fiéis, que consideram o ocorrido de menor importância diante da figura do religioso. A vida do garoto humilde valeria menos que a do padre ou algo assim. E nesse celeiro de pensamentos obtusos, a justiça humana prosperou. Se há outros níveis de justiça? Pode ser, não sei. Saberá o padre em suas horas de reclusão e solidão.

* O padre a que me refiro neste texto chama-se Edson Alves dos Santos, da paróquia da cidade de Alexânia/Go. Atualmente ele cumpre pena pela prática de crime de atentado violento ao pudor contra um adolescente.

3 comentários:

Suzana Guimarães disse...

Olá, Ana Lúcia!

Vim a teu convite. Apenas rolei a página e já confesso que gostei. Voltarei mais tarde para ler o texto.

Belas imagens!

Um abraço,

Suzana/LILY

Suzana Guimarães disse...

Voltei!

Li o texto, muito bem escrito. A justiça é muito falha pois é feita pelos Homens (e a do Brasil, deixa bastante a desejar), mas a justiça de Deus e do Universo é implacável, é só uma questão de tempo.

Um abraço,

Suzana/LILY

Ana Lucia Franco disse...

Suzana, muito bem vinda!

abrs.