quinta-feira, 28 de junho de 2012

A cartomante da W3


Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... -

Fragmento do conto A Cartomante, de Machado de Assis.
Procurou a placa indicativa que deveria estar na lateral do sobrado de esquina, pintado de amarelo claro com contornos em madeira nas janelas e no beiral da varanda. Não a viu. Parecia, perdeu-se nas dobras do tempo. No passado, lia-se na placa branca com letras vermelhas: “Mãe Dinah. Joga-se cartas e búzios”.

Lembrou-se dos adolescentes que riam muito daqueles dizeres. O correto seria: “Jogam-se cartas e búzios”, e não “Joga-se cartas e búzios”.

Naquela época, ela jamais procuraria uma cartomante. Ainda menos uma que escrevesse errado, tipo, “Joga-se Cartas e Búzios”. Não sabia, ainda, que para certas práticas, a cartomancia por exemplo, pode ser desnecessária uma escrita correta. Ou um bom nível de compreensão sintática. Há outros níveis de compreensão importantes.


Ah, havia tanto o que ela não sabia ainda, naquela época.


O mundo reservava para ela imagens que esvoaçaram no decorrer do tempo, desveladas. Abriam-se caixas maiores que continham menores, indeterminadamente. Mais imagens do que teorias, diferente da rota que ela mesma traçara; e percebeu a tempo que o maior devaneio seria controlar totalmente a rota.


Mais poesia do que prosa. Aberta veia para o surreal. E o que seria dela sem tal vertente? Na certa, uma pétala cartesiana e linear, distante de sua natureza de pétala, sem cogitar possibilidade diferente do roteiro entregue à sua geração.


Mesmo diante de questões de namoricos, ou outras quaisquer, não lhe ocorria, naquela época, procurar uma cartomante, apesar de passar em frente à casa de uma, duas vezes por dia, na ida e na volta do colégio Objetivo. Isso, durante vários anos.


A cada ano, ou de tempos em tempos, o sobrado da cartomante, em meados da avenida W3, melhorava de aspecto. Ganhava reformas, era valorizado. As janelas, de repente, ficavam mais bonitas. A cor com que o sobrado era pintado realçava a edificação. Sinais inequívocos de progresso material, o que despertava inveja, alvoroço, falatório.


    -  Uma vergonha..
    - Porque uma vergonha? Cartomante não pode ganhar dinheiro, só político?
    - Uma espiritualista, não poderia cobrar pelo serviço. Não é ético.
    - A placa diz que é só uma cartomante, não é espiritualista.
    - O serviço envolve comunicações transcendentais, não pode ser cobrado.


Mãe Dinah dividia opiniões. Despertava admiração, amor, ódio. Jogavam-lhe pragas. Iam visitá-la para atender à curiosidade. Alçavam a cartomante à posição de Diva, o que lhe rendia mais clientes e mais dinheiro que era empregado na reforma do sobrado. O local ganhou jardins e mármores.


Se ela visitasse uma cartomante, hoje, escolheria Mãe Dinah, apesar do seu inequívoco gosto pelo luxo. Ia porque Mãe Dinah tinha personalidade forte, era o que era, e não se importava com as críticas e julgamentos débeis de que era objeto. Mãe Dinah poderia se sentir culpada por gostar de luxo. Ainda que gostar de luxo não fosse a pior falha de caráter. Há falha bem pior. E Mãe Dinah não sentia culpa, parecia. Sem pudores, adornava o sobrado com símbolos de fartura e riqueza.


Ela não deixava de ter suas questões pertinentes aos caprichos de um oráculo. Mas a placa indicativa não estava ali, naquela casa da w3, imponente e silenciosa, o que poderia sinalizar a ausência da cartomante. Esconderam-se e, agora, como se nunca tivessem existido, a não ser na memória a abrigar a zoeira do bando de adolescentes que paravam a poucos metros dali e iam para o colégio, sem deixarem de caçoar da cartomante.


Escondidas ou perdidas nas dobras do tempo: placa e Mãe Dinah. Ou talvez continuem a existir num universo paralelo e intangível a sentidos tão parcos. Talvez a memória fosse isso, uma existência paralela, uma dança de impressões que, do passado, rastreavam, sem êxito, aquele ponto de uma avenida que parece parada no tempo. Nada havia, nem mesmo a saudade de uma época boa em que se acreditava: “tudo seria perfeito, como num roteiro de filme”.

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