Estarrecida, escutei no rádio do carro, outro dia, uma música em que uma mocinha cantava assim: "eu gosto é daquele animal, por ele sou capaz de um crime passional. Eu gosto é daquele cafajeste, que não me merece e que me enlouquece". Algo mais ou menos assim. Nítido reflexo da cultura do desespero e do vazio. Uma amiga me dizia, ontem mesmo, que só nascendo de novo para se livrar desse "carma coletivo". Talvez não. A realidade pode mudar, aqui e agora, ao menos em nível subjetivo. Parece papo autoajuda, mas não é. Está bem, sem chegar a ponto de fingir que não existe o que, atualmente, as mães chegam a ensinar para as filhas (às vezes elas aprendem sozinhas); e que está na música do rádio. Tenho certeza de que dá para fazer diferente, claro.
Fazendo um trocadilho com a situação, pensamos num homem pelo qual largaríamos tudo. O que atraímos, do que gostamos? Ah, se há um homem pelo qual eu largaria tudo por amor, faria loucuras, me apaixonaria perdidamente, é o meu irmão. É sério. Meu irmão de sangue, o único que eu tenho. Peraí, nada de apologia ao incesto, cruzes. Nada a ver. Largaria tudo por ele, se não fossemos irmãos, claro. Se nos encontrássemos em outras circunstâncias.
Creio em reencarnação, não escondo isso de ninguém. Procuro não conjecturar muito sobre, pelo menos enquanto estou aqui, vivinha da silva. Agora, somos irmãos. Talvez tenhamos sido algo diferente num outro tempo. Que importa? Certo que nos atraímos, de outro modo não seríamos irmãos. Isso revela muito sobre nós. Sobre mim. E me agrada. Ele é da “turma” que escolhi e a escolha se mantém. A vida pode ser a arte de cultivar (e manter) boas escolhas.
Sim, pelo meu irmão eu largaria tudo. Ah, porque valeria a pena. Não sei exatamente porque valeria a pena, não é tão óbvio assim. Meu irmão não é nenhum santo. Não é isso, exatamente, o que me atrai, mesmo porque é um atributo raríssimo. E é esperar demais (ou de menos) de alguém.
Meu irmão não é nenhum santo. Mas, por ele, eu largaria tudo. Sei lá, ele é adorável. Mesmo numa época em que o encanto já poderia ter ficado pelo caminho.
Muito fácil ser encantador com dezessete, vinte anos. Nesta idade, algumas pessoas têm uma carinha ingênua, pura. Boba, até. Eu tinha uma carinha assim, está na foto da minha carteira de identidade, que estou trocando por outra, porque aquela foto não cola mais. Devo renovar meu passaporte e com a carteira de identidade que tenho não poderia renovar. Olhei, olhei de novo a foto da minha identidade, tirada na adolescência. Uma ingenuidade que dói. Ou que não cabe mais. Não se parece mais comigo? Perguntei ao atendente da Polícia Federal, quando estive lá para renovar o passaporte. Parece, mas não aceitamos mais documentos com fotos de pessoas com cara de criança. Não parece mais não, seu moço.
Mas o meu irmão. Ele também tinha uma carinha pura aos dezessete anos. É fácil ter uma carinha assim aos dezessete. Eu acho que é. Difícil mantê-la. E, claro, ele não tem mais a carinha. Tem o encanto.
Ah, e ele também faz uns filhos lindos. Maria Clara nasceu recentemente e veio mostrar que o encanto se mantém, nunca se foi; está e estará presente. Como se fosse o vento que agita as fibras de sua vida. Ou o traço que o define. O impulso que o faz existir tão lindamente. Ser pai amoroso, marido amoroso, homem amoroso. Quanta sensibilidiade. E ele nem é pisciano.
Não sei definir o encanto. E é bom preservar o que nele há de indefinível. Identificamos se ele existe ou não, sem sabermos exatamente o que ele é. Ao mesmo tempo compreendemos que tudo seria tão pior sem ele. Maria Clara chegou devolvendo ao pai o encanto que sempre existiu. Que gera vida e vida em abundância. De repente, percebo que estamos a salvo. A vida não nos levou o essencial. Devolve-nos o amor que semeamos, em forma de um “choro tão lindo”. Quanta generosidade, benzadeus. Amor que gera mais e mais amor e somos amados porque amamos. É a lei. O resto é mito. É perséfone engalfinhando-se eternamente no inferno de Hades. É Zeus e sua infidelidade incurável. É Afrodite e seus ciúmes. Tudo muito distante do amor, que é esse aconchego, essa coisa boa que nenhum inferno nos exigirá. O peito aberto, o olhar erguido é só consequência. Efeito de uma causa tão ampla. Talvez a única causa real. Ah, o amor.
Aquele antigo ditado, sempre tão atual: “diga-me com quem andas, que dir-te-ei quem és”. E estou feliz (também aliviada) por ter andado com o pai da Maria Clara. Que não foi só meu irmão. Foi também os homens que conheci. O pai dos meus filhos. Até meu instrutor de yoga, encantador e verdadeiramente amoroso. Ah, o encanto me atrai. E o bom, o verdadeiro, o amoroso. Que alívio! Diante de nossas escolhas, somos. Ou somos nossas escolhas. O resto é conversa fiada. É ócio vicioso e escravizante que transborda. Ah, e pretendo ser fiel às minhas escolhas até o fim. E ponto.
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