terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Arte no Cotidiano III (um conto machadiano)








O conto O Espelho, do livro Papéis Avulsos, de Machado de Assis, inicia com a discussão de um grupo de Cavalheiros sobre questões de alta transcendência. Isso, numa casa no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, bem o ambiente machadiano. A discussão, sem que "a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos", resvalou pela natureza da alma. Questão controvertida. Cada cabeça uma sentença. Até que Jacobina, um Cavalheiro entre quarenta e cinquenta anos, sugeriu algo no mínimo curioso: temos duas almas, uma externa e a outra interna. A primeira olha de fora para dentro e a outra de dentro para fora, e "as duas completam o homem que é metaforicamente uma laranja". E a opinião de Jacobina não era fruto de algum insight ou de investigações meramente intelectuais sobre metafísica e questões de alta transcendência, mas de sua experiência pessoal, da época em que, aos vinte e cinco anos de idade, se tornou alferes da guarda nacional.


Na época, a alma externa de Jacobina limitou-se ao título de alferes, pelo qual ele era reconhecido, agraciado. Logo que recebeu a distinção, as duas almas, interna e externa, ainda se equilibravam, até que ele foi passar um mês com sua tia, D. Marcolina, que morava num sítio distante da cidade. Lá, por ser alferes, era o centro das atenções, tratado por todos como "senhor alferes". O entusiasmo com sua presença foi tanto que em seu quarto foi colocado um espelho, relíquia que destoava do restante da mobília da casa, modesta e simples.


Jacobina passou a ser os rapapés e as cortesias de todos, cercado de carinhos e atenções, o que teve o efeito de lhe provocar uma profunda transformação: "o alferes eliminou o homem", deixou uma parte mínima de humanidade, e a alma externa "que era antes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças" passou a ser a bajulação decorrente do título de alferes.


Mas, tia Marcolina e todos do sítio tiveram que se ausentar por alguns dias e Jacobina ficou só, o que lhe causou grande opressão. Dominado pela alma exterior, não teria por alguns dias as atenções e as cortesias a que se acostumou, o que teve para ele um efeito desolador, algo pior do que a morte. O tempo passou e Jacobina se viu mergulhado cada vez mais na solidão, só, com os bichos do sítio, e a opressão aumentava numa sensação inexplicável. Um morto vivo, uma sombra, algo inanimado, um boneco, assim Jacobina se sentia. Mal comia, chegava a fazer alguns exercícios físicos, dava-se beliscões na perna, queria se sentir. Isso, envolto em silêncio, muito silêncio.


Ao fim de oito dias, olhou-se no espelho pela primeira vez e o que viu o fez recuar: uma figura vaga, imprecisa, difusa, sem contornos definidos. E aquela imagem desoladora era Jacobina, o que aumentou sua opressão. E Jacobina talvez fosse também um espelho opaco, sem a imagem construída pela alma externa. O título de alferes era uma conquista que conferia a ele honra e reconhecimento, e tudo o que não se tem interiormente busca-se conquistar: um amor, uma honraria, a dignidade, ou o que for. Mas, o que somos de fato? Nesse ponto, quase não se chega, não se alcança, pois antes disso pode haver um mar de opressão e sofrimento a ser atravessado, exatamente o que se busca obliterar com a alma externa, e o que provoca o desequilíbrio de almas. Era isso o que Jacobina vivenciava. Até que ele teve a idéia de vestir a farda do alferes. Vestia-se de alferes e mirava-se no espelho, o que o restituiu a si, um alívio que lhe permitiu atravessar, sem enlouquecer, mais seis dias de solidão.


Assustador, não é?


Esse conto, escrito no século XIX, é impressionante em sua atualidade e a meu ver resolve razoavelmente a questão da "alma", ou de nossa experiência de ser. Somos o que nos cerca, ou o que nos cerca é o que somos? Seremos algo ainda que destituídos dos estímulos do mundo exterior? A resposta para essas questões está na qualidade da solidão e da alma interior de cada um, numa época em que isso soa terrível. Neste tempo de Jacobinas, o que fazer para alcançar o equilíbrio entre a alma exterior e a interior sem resvalar em extremos, em solipisismos, em radicalismos? Isso Machado de Assis, que não era de dar conselhos, não diz.

4 comentários:

Paulo Laurindo disse...

Não conhecia o conto. Boa lembrança. Lerei.

Ana Lucia Franco disse...

Oi, Paulo, aproveito para deixar um link onde o conto pode ser baixado gratuitamente através do site Domínio Público.

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1948.

obrigada pela visita, bjs.

Marcelino disse...

Machado de Assis é fenomenal, outros dois contos dele que mereceriam um comentário teu são: Uns braços e A causa secreta.

Ana Lucia Franco disse...

Excelente sugestão, Marcelino, dois adoráveis contos, obrigada pela visita, bjs.