domingo, 17 de fevereiro de 2013

O anti-herói de Dostoiévski ou só a honestidade salva


Neste ano regido por saturno, pensei em um clássico da literatura para comentar aqui no blog, e que tenha a ver com a simbologia astrológica do planeta.  O primeiro nome que me ocorreu foi o de Fiódor Dostoiévski,  traduzido do russo por Boris Schnaiderman para a editora 34. Poderia encontrar algum conteúdo saturnino, também, em Machado de Assis. O escritor russo foi quem primeiro me ocorreu. 

Dostoiévski tem uma forma de escrever charmosa, meio bruta, filosoficamente aguda e lúcida, que traz uma visão mega realista da sociedade russa do séc. XIX, atual em nossa época, reforçando o que extrapola limites históricos ou espaço/temporais. Há um livro de Dostoiévski, curtinho, delicioso, perturbador, que se chama Memórias do Subsolo. Bem poderia ser “Memórias de um Saturnino”. Para terem uma ideia, o anti-herói criado por Dostoiévski (ou por ele captado) e habitante de um subsolo íntimo, assim se define: “Sou um homem doente...Um homem mau..” (...) (pág 15). Ah, nada mais saturnino. Mazelas do ser limitado no espaço-tempo (um subsolo, talvez..). Ainda bem que ele, ao invés de enxergar a maldade nos outros, o faz em si, não projeta. É corajoso o anti-herói de Dostoiévski. Que admite: “ O caso todo, a maior ignomínia, consistia justamente em que, a todo momento, mesmo no instante do meu mais intenso rancor, eu tinha consciência, e de modo vergonhoso, de que não era uma pessoa má, nem mesmo enraivecida; que apenas assustava passarinhos em vão e me divertia com isso. Minha boca espumava, mas, se alguém me trouxesse alguma bonequinha, me desse chazinho com açúcar, é possível que me acalmasse”(...) (pág. 16). Pareceu, ele se conhecia bem.  Ocorreu-me a inscrição do Oráculo de Delfos: “conhece a ti mesmo”. No patamar do conhece a ti mesmo, o auto-engano é um pecado , um “erro de alvo”. Ainda que doa,  a ruindade não está no próximo. A projeção dela em outra pessoa me parece covarde, ignóbil.  Assim, o anti-herói de Dostoiévski, que poderia ser mau, mas covarde não era, me conquistou. Embora atormentado: “Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa” (...) (pág. 18). Qual a alternativa, então? Entregar-se cegamente aos prazeres mundanos, capazes de estancar o fluxo da consciência perspicaz? Escolher uma entre várias alternativas para a fuga de si, na Rússia do séc. XIX. Na sociedade contemporânea, interligada, as opções para a tal fuga de si triplicam. Fugir pode parecer melhor do que o subsolo que embrutece e amarga, a ponto de se chegar e dizer: “sou mau”. O anti-herói de Dostoiévski atingiu seu extremo e admite isso no final do livro. A honestidade é um consolo. Mau, mas honesto. E honestamente não dá para fugir.  

Dentro de seu subsolo, é capaz de  perceber uma certa “vida viva”, que lhe poderia ser redentora. Sabe-se o anti-herói  meio morto. Mas, onde encontrar a “vida viva” no mar de auto-engano que sua mente aguda e perspicapaz rastreava. 

Auto-engano, a título de exemplo: a pessoa que não assiste a programas de televisão porque não quer ser manipulada pela mídia e não sai da internet onde está a mesma mídia,  imerso em auto-engano que para o anti-herói de Dostoiévski é inadmissível. Outro exemplo: o intelectual niilista, cercado de diplomas e títulos, quer implodir o super-ego, mas que não se implodam suas cercas. Os heróis do cantor Cazuza “morreram de orverdose”, numa de suas músicas. Os nossos heróis querem só dar entrevista para o Jô ou alguma bizarrice assim. Imersos em contradição, em auto-engano. Afinal, todos estamos ancorados e pretender implodir a âncora alheia, sem se dar conta da própria, é auto-engano, perda de tempo, chamem como quiserem. O anti-herói de Dostoiévski se auto-conhecia, só isso. 

Mas onde estaria a tal “vida viva” que poderia retirar nosso anti-herói de sua amarga masmorra? No cumprimento de papéis sociais pré-determinados que servem de bússula ao homem moderno, como serviram ao homem russo do século XIX?. “Olhai melhor! Nem mesmo sabemos  onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos e, imediatamente, ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar” (…) (pág. 146)

Onde está a vida viva para o homem moderno, escravo da internet, do escritório, da repartição. Escravo de padrões midiáticos. Escravo de uma mente que não domina, um penta prisma que não sabe direito o que reflete.  A questão que o livro delineia é assombrosamente atual. E o anti-herói de Dostoiévski nos dá um exemplo norteador: conhece-te, porque só a honestidade salva. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Faz tempo que li 'Memórias...', mas achei o livro mais introspectivo do 'Dostoi'

Achei suas colocações muito perspicazes.

Ótima semana para você, Lúcia!

Ana Lucia Franco disse...

Ótima semana, Will!