segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ondas do Destino (uma reflexão)


                   Imagem do filme Ondas Destino

Curto cinema contemporâneo, mais do que cinema antigo. Uma parcela do cinema contemporâneo é criativa, artística e aborda temas atuais.  Mesmo a temática atemporal, que desafia qualquer época,  pode ganhar interessante realce técnico no cinema contemporâneo, onde nem tudo é descartável,  mercadológico e consumível. 

Por falar em cinema contemporâneo, há tempos eu penso em comentar aqui no blog o filme "Ondas do Destino", do diretor dinamarquês Lars Von Trier, que é um ícone do cinema contemporâneo alternativo. Taxado de genial por ser genuíno e ousar ir contra a maré hollywoodiana, Lars acabou, no final das contas, por repercutir neste  mesmo mercado cinematográfico, com filmes que criticam e debocham da sociedade americana,  como "Dogville", lançado em 2003. 

Mas, o tom  misógino de alguns filmes de Lars Von Trier pode ser incômodo. Atualmente, ele roda um filme chamado "Ninfomaníaca", talvez mais um ato de misoginia cinematográfica. Veremos. 

No começo da década passada, assisti, pela primeira vez, ao filme "Ondas do Destino", de 1995,  protagonizado pela Emily Watson. O filme pode levar a uma reflexão sobre amor e relacionamento. É um  retrato  grotesco de mulher, que, se por um lado era encantadora em sua (pseudo) bondade, ingenuidade, submissão e suposta capacidade de amar, repleta de atributos femininos caricatos, por outro lado era também burlesca em sua estupidez. Lars Von Trier ressaltou bem o segundo lado e não poupou cenas desagradáveis, resultado de uma espécie de  "escavação" e exposição dos meandros da alma feminina que, afinal, é de todas as mulheres, irrestritamente. Não dá para olhar de fora e dizer: "não é comigo". É com todas, claro. 

Até que ponto se pode chegar por amor, ou um sentimento ou predisposição psíquica que se acredita ser amor? É a questão inevitável do filme. Outra questão é: qual o limite indevassável de cada um ou cada uma numa relação amorosa? Quais  limites da persona diante da confluência com o outro. O que se perde neste movimento do que até então representava um norte. O que se pode perder em função do outro e o que não se pode perder, jamais. Não há fórmulas, não há como prescrever o que deve ou não ser feito.   Palpites são espumas. 

Tentarei não contar o filme, pincelarei os fatos principais. Bess Macneil é uma jovem que vive numa pequena e conservadora comunidade no norte da Escócia e, por anos a fio, arriou os joelhos em oração e pediu a Deus um amor. Até que surgiu Jan Nyman, estranho à pequena comunidade, que se encaixou como luva nas expectativas desejosas de Bess. Casaram-se. Viveram uma relação sexual intensa no começo do  casamento. Situação, enfim, criada pela própria Bess, que não deixava de agradecer a Deus por atender a seu pedido. 

Nem tudo era perfeito. Jan trabalhava numa plataforma de petróleo e teria que passar longos períodos imerso no trabalho e longe da mulher. Ele se foi dias depois do casamento, o que representou um franco sofrimento para os recém casados. Para Bess, quase uma abstinência física. Bess estava viciada em Jan.  E não poupou Deus de mais um pedido fervoroso, que afinal foi concedido com uma mensagem nas entrelinhas: "cuidado com seus pedidos, eles podem se realizar".

Jan voltou do trabalho para não mais ir embora. Acidentou-se gravemente na plataforma de petróleo e voltou para casa de vez, na qualidade de paralítico do pescoço para baixo. Nada de sexo com Bess. Nada da relação prazerosa que tinham antes. Teria Deus testado Bess? Ou a teria punido pela leviandade de um sentimento cego que a anulava. De qualquer modo, Bess queria provar a si que a doença de Jan em nada modificava o amor que ela sentia. Faria qualquer coisa por Jan, o amava. E o amor, bem, envolve sacrifícios, não só prazeres. Mas que ordem de sacrifícios? O que se deve fazer ou não fazer por amor? 

No leito do hospital, convalescendo, Jan pediu a Bess que tivesse relações sexuais com estranhos que encontrasse eventualmente na rua e depois viesse lhe contar as aventuras, em detalhes. "É como se fosse eu, Bess". "É importante para mim". Bess prescindiu de toda sua formação moral e religiosa e, na conservadora comunidade em que vivia, se entregou a monstros que poderiam até ser seus antes do pedido de Jan. Ou não. A postura solícita de Bess diante do pedido de Jan talvez não tenha sido um mero ato de amor,  embora parecesse. 

A bondade de Bess, a condescendência ilimitada, na realidade, a tornaram um imã de predadores. O primeiro deles, o próprio marido. Quanto mais "boazinha" a mulher, mais condescendente, mais incapaz de dizer um "não", um "chega", maior a possibilidade de atrair predadores ávidos de algum sacrifício. Parece  inevitável. Por sua vez, o predador, repleto de complexos, alimenta sua necessidade doentia de domínio. Mesmo que o domínio recaia sobre uma figura indefesa como Bess. 

Bess era infantil, encantadora e frágil,  e não suportou o peso de suas sombras, catalisadas a partir do encontro com o predador que tinha total poder sobre ela. Ele poderia não ter catalisado o conteúdo sombrio de Bess, se quisesse. Poderia tê-la poupado. Mas não o fez. Talvez quisesse o sacrifício que por fim ocorreu.  Poderia ser de outro modo? Claro. Se os sonhos de amor de Bess não tivessem minado totalmente sua capacidade de escolha, seu arbítrio diante da própria vida. Ela poderia fazer muito por Jan. Mas não faria tudo, absolutamente tudo. Havia limites a serem preservados.  

A Bess de Lars Von Trier tem uma riqueza psicológica notável. Se por um lado ela tem algum "poder", digamos assim, de influenciar os fatos que a cercam em razão, acreditava ela, da intervenção divina, este mesmo poder, de Bess ou de Deus, não foi suficiente para livra-lá do perigoso caos em que se transformou sua vida, o que atraiu um final trágico. 

Por mais que se sonhe como um príncipe encantado, com um provedor ou provedora de necessidades físicas e psicológicas, há sempre a possibilidade de emergir alguma inteligência diante de uma situação de risco iminente, muitas vezes óbvia, outras nem tanto. Alguma inteligência ou algum sentido que possa sublimar um conteúdo mítico intrínseco, capaz de emergir dos porões da psique e impor contornos de deletérios a trágicos e até mesmo fatais. Esta inteligência, por uma série  de circunstâncias, faltou a Bess, que sucumbiu ao mito. Ela desceu aos infernos e de lá não retornou por não reconhecer a iminência do aniquilamento. Julgava-se movida por amor quando, na realidade, por uma total falta de amor,  permitiu que seu território, não apenas físico, também psíquico, fosse invadido por monstros. Bess, a boa Bess,  delinquiu-se numa caricatura sombria e fantasmagórica. E impõe um espelho incômodo a todas as mulheres, mesmo àquelas aparentemente incapazes de agirem como Bess, incapazes de se sacrificarem pelo que na realidade nenhum sacrifício exige, e que podem ter sido poupadas, tão só, pelos fatos, pela história de vida. 

Quanto de Bess há em nós? Em que grau Bess pode ser reconhecida. A reflexão se impõe. O que pode fazer catalisar sombras sob a máscara do amor e criar um híbrido monstruoso de eros e tanatos. Talvez mentiras socialmente aceitas, padrões sociais desumanos, fórmulas da felicidade que cada época não se cansa de lançar e não cansamos de aderir como peixes fisgados por pensamentos que podem não ser nossos. E o erro pode ser muito grave, até mesmo irreversível. Fora de uma situação como a de Bess, é pouco agradecer pela sorte ou pelo acerto de nossas escolhas. Podemos refletir e nos permitir um conhecimento profundo e honesto de predisposições, até indmissíveis. E assim talvez chegar ao que pode desenvolver outros valores. Outras perspectivas. Outros mitos. Ou ainda, a possibilidade de se sair do mito para a filosofia e para o mito novamente, numa espiral ascendente. 

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