sábado, 26 de outubro de 2013

"Eu sou luz" ou parece um disco quebrado



No atual contexto, se há algo que me intriga são fórmulas evolutivas prontas e acabadas, tipo produto consumível. “Use, modifique-se, você será salvo”. Um uniforme universal. Ou uma camisa de força evolutiva. Vestido o uniforme evolutivo, tudo que se faz, fala, pensa é previsível. O evoluído se torna padronizado, pasteurizado, sem qualquer profundidade. Seja a pessoa de leão ou capricórnio, todas  previsões astrológicas são previsíveis. Saia a Torre ou o Mundo, no tarot, já se sabe de antemão quais serão os conselhos. Percebam, o fenômeno pode ser observado não apenas em meios religiosos ortodoxos, também pã-religiosos, pã-espiritualista, pã-qualquer coisa. E, outra, não bastam produtos evolutivos nacionais em número considerável. Também importam-se fórmulas evolutivas. 

Faz-me pensar: porque tanta necessidade de padronização? O que tanto se quer empurrar para debaixo do tapete para não ver, para não sentir, para não lidar. Porque tanto se precisa afirmar: “eu sou luz, eu sou luz, eu sou luz”.  Desde quando luz precisa de afirmação? O sol precisa se afirmar? Não dá para duvidar do que é divino sob as doces tramas do sol, que se cumpre e transforma escuro em pura cor, doce dança de ilusão. Envolve-nos numa acolhedora trança de fótons. Não precisa afirmar nada. O que precisa afirmar luz talvez seja pura treva. E daí. Ninguém está aqui para julgar o que é treva, o que é luz.  

Pode haver muito medo nisso tudo. Um medo de não ser aceito. O paliativo desse medo é a bendita luz. “Eu sou luz, eu quero ter um milhão de amigos, para toda ação uma reação, tudo que sobe desce”. Tanta padronização. Começa-se a pensar igual a todos, em série. Pode ser seguro mas empobrece. Para se ser aceito negocia-se até a alma. Porque a alma não é só luz. E se fosse só luz, faria tudo menos autoafirmações. 

Afirmar talvez nada adiante. A palavra, muitas vezes, não é capaz de atingir camadas psicológicas mais profundas onde jazem imagens que projetam vibrações. Por isso, por mais que se afirme, talvez não haja qualquer concretização do afirmado. Aí vem a frustração: repeti isso durante tanto tempo, e nada. Sou ou não sou a tal? Mamãe, desde que eu era pequenininha, disse que eu era a rainha da primavera, mas, ops, porque não acerto todas? Fica-se perdido mesmo, é natural. 

A propósito, talvez um dia se saiba que nos amaram verdadeiramente nos momentos em que nos mostraram explícita ou implicitamente: “você não é a rainha da primavera da mamãe, não é a tal”. Amor em nível mais apurado. Desamor é sim tudo que perpetua rainhas da primavera com mais de quarenta, de cinquenta, de sessenta anos. Rainhas da primavera extemporâneas, talvez um dia, pasmas, constatem que não  foram amadas mas desamadas.  

Voltando à palavra e suas limitações. Nem sempre se distorce uma situação, se  molda pessoas, ou se transforma o que é mentira em verdade por meio de afirmações. Ninguém é a rainha da primavera da mamãe, lembram? Nem que se repita, diariamente, durante anos a fio, o que é mentira não se torna verdade. Há um contrato social com outras pessoas, a realidade não está ao bel prazer de nenhuma rainha da primavera. Bacana reconhecer limitações, ao mesmo tempo em que se rompem limitações. Tudo muito paradoxal, contraditório. Nesse contexto, vale  desenvolver bom senso. Tem uma palavra de que gosto muito: desconfiômetro. Não consta em dicionários, não sei quem a inventou, é um neologismo que escutei por aí. Parece um instrumento marítimo, desses que nos guiam em alto mar. Parece bússula. Também é bússula. Mais que bússula. Enfim.

Sabem o que eu vejo pessoas realmente do bem, da luz, fazendo?  Reconhecendo seus erros, suas limitações, jamais se afirmando de luz. Acho tão bonito isso. Tão nobre. Afinal, quem não tem seu quinhão, meu Deus! Por mais Maria Imaculada que se seja, vive-se num mundo repleto de dificuldades, só por isso ninguém é santo. Ninguém mesmo. E quando não se aceita as próprias limitações, os próprios erros, muito menos se o faz em relação aos outros. Resultado, haja: “eu sou luz, eu sou luz, eu sou luz”. Parece um disco quebrado. 

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