terça-feira, 24 de maio de 2011

O Lago faminto..





O Lago Paranoá, em Brasília, é um leito de águas com cor indefinida que compõe a paisagem da Capital, de norte a sul do plano piloto. É um Lago artificial, mas não um mero capricho dos construtores de Brasília. O Lago foi feito para amenizar a baixa umidade do ar no período da seca. E enfeita a Capital, ameniza sua seriedade e é local de lazer dos brasilienses, onde há a ermida Dom Bosco, o pier, o pontão e onde velejamos, navegamos. O Lago encanta quem chega por aqui de visita, tão plácido, tão tranquilo. Praticamente inofensivo, embora furioso.

A pior fúria não é a que se mostra. A pior fúria está na falsa tranquilidade e pode emergir inesperadamente das dobras da placidez. Sim, o Lago é um convite para navegar numa bonita tarde ou noite de outono em suas águas aparentemente tranquilas. Afinal, é um Lago artificial, não guarda em si os mistérios dos lagos naturais.

Quem disse?

É um Lago também misterioso em sua em inexplicável fome. O Lago tem fome. Fome de embarcações, e não descuidem as embarcações que passeiam pelo Lago, nunca, pois suas águas são impiedosas, como se no fundo dele estivessem Medéias e Canídias que de vez em quando soltam seus bafos. E salve-se quem puder.

Domingo à noite, eu estava no bistrô do Centro Cultural Banco do Brasil quando uma amiga chegou com a notícia de que uma embarcação acabara de afundar no Lago Paranoá. Nos dirigimos até a beira do Lago e devido à distância não pudemos distinguir muito bem o fato. Ainda assim, o ímpeto de ajudarmos foi grande.

O Lago devia estar gelado, a noite estava fria. Há quantos anos não há uma noite fria em Brasília nesta época do ano? Mas aconteceu da noite de domingo passado estar fria, muito fria. Estávamos distantes, mesmo assim era como se sentíssemos o sofrimento que vinha daquele ponto do faminto Lago, que requer máxima atenção e cuidado dos que ali navegam, caso contrário é como se o Lago não tivesse piedade.

Nessas horas, sentimos o quanto somos interligados a outros seres humanos cujo sofrimento pode nos afetar bastante. Perdeu a graça estarmos no bistrô, tranquilamente. Há algo diante do que tudo o mais perde a graça e se reveste de uma acintosa futilidade. Não voltaríamos para lá, pois outras pessoas próximas dali tinham, naquele momento, que lidar com a assombrosa fome do Lago Paranoá, que silenciosamente envolveu a embarcação Imagination, com 104 pessoas, entre tripulantes e convidados de uma festa.

Já estive em algumas festas em embarcações no Lago Paranoá. O aniversário de trinta anos de uma amiga, há alguns anos, foi a última festa em que estive numa embarcação no Lago. Era uma tarde de final de semana, dia lindo e o Lago em sua costumeira tranquilidade, mas com os ares de Medéia espreitando, sempre, os descuidados e imprudentes. Correu tudo bem, confraternizamos e chegamos salvos até o pier do clube Ascade, como se nada tivesse acontecido e nada aconteceu mesmo. O Lago nos restituiu.

O que não aconteceu com algumas pessoas da embarcação Imagination, cujo sofrimento pudemos pressentir de longe e nos comover e tentar ajudar. Seria um absurdo nos atirarmos no Lago naquele momento para ajudarmos, mas havia vontade de fazê-lo. Eu pelo menos, modéstia à parte, nado razoavelmente. Mas, o máximo que pudemos fazer foi contatar a polícia e o corpo de bombeiros que já estavam informados do fato. E não retornamos até o bistrô. Como se tudo de repente ganhasse outra feição e fosse um acinte nossa diversão e o fato de podermos retornar tranquilamente para nossas casas. De repente, pesou a futilidade diante do teor imprevisível da vida. Como se estivéssemos sonhando e de repente acordássemos para a realidade que é a fragilidade da nossa existência. Há quem acredite que chegada a hora de partirmos, pronto, não há o que fazer. Acredito que, sempre, há o que fazer, e que a vida é preciosíssima e requer todo o cuidado possível.

Não sei como está a questão da fiscalização das embarcações que navegam o Lago Paranoá, mas tempo desses precisaram afundar algumas embarcações para que se exigisse uma maior fiscalização nesse sentido. E, no caso, que as investigações prossigam, que encontrem as causas do acidente para que se intensifique a segurança das embarcações que se atrevem a navegar o Lago faminto. A vida prossegue e a esperança de que cada vez mais tragédias como essa possam ser evitadas.

4 comentários:

Paulo Laurindo disse...

Mais uma vez vemos vidas se perderem por conta, certamente, do descaso, da omissão e da imprudência, porque neste país tudo parece feito apenas para o lucro e nunca para os seres humanos.

AC disse...

Ana Lucia,
O sentido de pronta ajuda que transmite é uma das coisas boas do ser humano. É, aliás, umas das suas características que faz com que acredite no futuro. Mas, na calmaria, há pessoas demasiado imprudentes, para quem a palavra segurança causa tédio. E, infelizmente, isso é muito peculiar dos povos do hemisfério sul. Agora, surge uma questão: vamos defender esse modo de vida e criar lendas à sua volta? Ou, muito simplesmente, vamos enfrentar os problemas de frente?
Não sei se isto vem a propósito, mas foi o que me surgiu após ler o seu texto.

Uma boa semana!

Marcelino disse...

O título "Lago faminto" e expressões como "lago furioso", "água impiedosas", etc, embora caibam na conta de belíssimas metáforas, podem desviar o foco para o principal problema -que tu retomas no último parágrafo: a insensatez e imprudência do homem.

Ana Lucia Franco disse...

Paulo Laurindo, AC, Marcelino muito grata pela presença, pela leitura atenta e pelos comentários sempre tão importantes..

bjs!