terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Do Ovo à Matrix - Um conto de Clarice Lispector

(Tarsila do Amaral)


A primeira vez que li Clarice Lispector, o livro Perto do Coração Selvagem, devia ter uns quinze anos de idade. Naquela época, era acostumada a contadores de histórias e a literatura intimista de Clarice me causou estranheza, incômodo. Aprendi a compreendê-la no decorrer da vida e a valorizar sua literatura que me parecia de muita entrega e talvez sacrifício. Algo como se o “eu” dela cedesse a uma dimensão maior. Que bonito isso, sincero, puro, embora muitas vezes não agradável. Ela não escrevia para agradar e se por um lado isso pudesse causar estranheza, por outro era um ato de honestidade com ela e com os leitores. A meu ver, a arte, a literatura, não tem a função exclusiva de agradar, adular, aquecer, salvar, para isso há a religião. A arte abrange a complexidade do ser humano e não pode se limitar a uma função.



Há um conto de Clarice que considero muito importante e significativo a medida em que de algum modo revela seu enigmático processo literário. Trata-se de "o ovo e a galinha", do livro Felicidade Clandestina.

O conto parece o resultado da contemplação de um ovo em cima de uma mesa. Cena cotidiana, simples. Um ovo em cima de uma mesa e a partir disso uma curiosa intuição da protagonista : “ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há milênios”. Então, o ovo visto não seria o ovo em si, mas a memória do ovo. “Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo”. Intrigante. Parece que essa intuição se refere ao quanto os nossos sentidos físicos são enganosos, ou ainda que o ovo visto, na realidade, é a projeção de uma memória.

A intuição da protagonista do conto me remete a um documentário que assisti, realizado em 2004, What the bleep do we now?, que em português recebeu o nome de "Quem Somos Nós", em que cientistas, físicos, místicos da atualidade se referem a isso: o que vemos são memórias, projeções, e podemos nos tornar incapazes de vermos algo diferente do que está nas memórias armazenadas no cérebro, o que pode ser um modo limitado de interagir com o mundo e de viver. Se a analogia está correta, grande intuição a de Clarice. Mas, a intuição dela não é só isso. É isso e mais alguma coisa.

O ovo do conto é de compreensão impossível: “sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro”. O entendimento em si seria um erro. Clarice, no livro "uma aprendizagem e o livro dos prazeres", afirmou: “viver ultrapassa qualquer entendimento”. Entender seria limitar. Clarice declina dos entendimentos, viver ultrapassa o entender, o que é muito corajoso, eu acho, pois se vive numa humanidade ávida por entendimento sem se preocupar em reconhecer o significado dessa avidez diante da óbvia limitação de um entendimento total. Antes de se reconhecerem limitados, querem entender tudo. O entendimento poderia ser uma fuga? E o que, na realidade, se entende racionalmente se não o que já está de algum modo gravado em nós? O entender nesse nível seria errar. E Clarice parece que não fazia questão de entender, ou não se limitava ao entendimento do óbvio. Em outro momento do conto, ela afirma: “O que eu não sei do ovo é o que realmente importa”. Assim, ela intui uma realidade oculta além do que ordinariamente ela sabe do ovo, e isso parece que não a incomoda, mas liberta. O saber que não sabe é libertador e eu acrescentaria que é corajoso caminhar, firme, no terreno do incerto.

Com relação ao ovo, haveria verdades que se sobrepõem, pois a “veracidade do ovo não é verossímil”. E sustentar a verdade de algo não verossímil é perigoso à ordem aparente das coisas: “o ovo nos põe, portanto em perigo”.

Assim, a protagonista do conto se limita a quebrar o ovo e colocá-lo para estalar na frigideira, ato que a reduz à sua vida pessoal, num necessário sacrifício, pois o verosímil está para além do entendimento ordinário. “Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã”. Ela não compreende, sonha, e sabe disso, o que não a aflige, pois ela “advinha” que “eles” a querem ocupada e distraída e não lhes importa como. Mas, quem são eles? A protagonista do conto tem a nítida impressão de que ela é o meio de realização de um destino que a ultrapassa, e não um fim: “pelo menos isso eles me deixaram adivinhar”. E eles, quem são? Isso remete à trilogia “Matrix”, dirigida pelo irmãos Wachowsky: somos todos controlados. “Fizeram-me esquecer o que deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles”. Não é curioso isso? A protagonista do conto escrito por Clarice Lispector intui a Matrix dos irmãos Wachowsky, inspirada em Baudrilhard, muitos anos antes dela chegar até a mídia.

“Mas durmo o sono dos justos por saber que a minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo”. A protagonista do conto de Clarice dorme e sabe que dorme, pelo menos isso ela sabe. Quantos dormem e nem sabem? E o acordar não dependeria exatamente dela como ser individual: “é que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração”. E a individualidade seria possível a medida em que não atrapalhe o trabalho deles, pois há um “destino” que a ultrapassa, e isso depende “deles”. Matrix total.

E de só adivinhar o mistério, o pouco que foi permitido adivinhar, a protagonista do conto já se sente livre, maliciosamente livre, é verdade. E diante do mistério intuído, o que fazer? Talvez não fazer, apenas se cumprir. E o ovo nessa história toda? O ovo foi esquecido, falar do ovo é uma maneira de esquecê-lo. “Este é um subterfúgio deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido o ovo”. O ovo: o alfa e o ômega, o princípio e o fim, o universo ou o que se mantém não sabido do universo que, segundo a ciência, é 95% dele.

Enigmático, intrigante, sobretudo quando se associa esse conto de Clarice ao filme Matrix e ao documentário “What the bleep do we now?”. Parecem pecinhas que se encaixam num panorama ou numa possibilidade. Quem pode saber?

4 comentários:

Marcelino disse...

"Entender seria limitar", é disso que nos fala Fernado Pessoa com seu Alberto Caeiro:
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."
Pois é, a obra de Lispector expande-se para além das páginas de seus livros, ela dialoga muito, ela nos diz muito, e destacar essa característica -como você o faz- é extremamente salutar.

Ana Lucia Franco disse...

Oi, Marcelino, Fernando Pessoa e Clarice parece que beberam na mesma fonte, vide o Guardador de Rebanhos, do Alberto Caeiro. Maravilha de lembrança.

bjs, obrigada pela visita.

Ana Tapadas disse...

Entender, Aninha, seria esmagar a maravilha!
Beijinho

Ana Lucia Franco disse...

Como se esmagam florzinhas num canteiro, Ana.

Sempre bom te ver por aqui querida, bjs.