terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O Centauro de Scliar





Há alguns anos, entrei numa livraria e achei interessante o nome do livro “O Centauro no Jardim”, do escritor Moacyr Scliar, de quem havia lido algumas crônicas. Mas romance? Será que Scliar era um bom romancista?

Recentemente reli o livro, pois é muito bom ler Scliar, que não é nenhuma unanimidade, ainda bem, pois toda unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues. Mas que Scliar escrevia com arte, ah, escrevia.

O livro traz uma metáfora descrita numa narrativa primorosa sobre a história do centaurinho gaúcho Guedali, que não era filho de Ixion e Nefele, como na mitologia grega, mas de Leão Tratskovsky e sua esposa, casal de colonos judeus russos que moravam no interior do Rio Grande do Sul, no município de Quatro Irmãos.

Isso mesmo, do casal de humanos nasceu um centauro, imaginem. Metade humano e metade cavalo, com todos os constrangimentos e implicações que um ser desses pode causar a um casal de colonos na condição de filho. A situação do pequeno centauro, que logo se conscientizou de suas características nada comuns, é comovente. O esforço dos familiares para aceitá-lo e dar a ele uma vida normal era coisa bonita de ver (ops, de ler). Não há como deixar de se envolver com os dramas psicológicos de um ser totalmente estranho ao meio que o cercava e seu esforço por adaptação a padrões normóides.

A porção humana de Guedali era operante: ele se comunicava, lia, escrevia, tinha um intelecto saudável e uma relação de afeto genuíno com as irmãs e os pais, fora o irmão que era hostil a ele por ciúme da atenção e cuidado que Guedali recebia de seus pais. Cuidado e atenção que deram ao centauro um importante suporte psicológico para que enfrentasse sua sina de ser mitológico.

Mas, a porção animal de Guedali era tão inquieta que uma hora ele deixou os pais e, quer saber, colocou os cascos no mundo em busca de si, de uma razão, uma finalidade, qualquer coisa que o ajudasse a compreender porque era o que era. O que encontrou foi uma linda centaurinha, Tita, lá pelo sul do Rio Grande, com quem se enamorou. Tita também era filha de humanos, um fazendeiro e uma de suas amantes. A centaura foi criada com todo carinho pela esposa de um fazendeiro chamado Zé, que morreu no dia em que Guedali chegou. O centauro passou a ser o “homem” da casa.

Embora o casal vivesse feliz, pleno, em total liberdade na fazenda, o fato é que tinham, no fundo, uma ânsia de se enquadram em padrões normóides, o que significava se tornarem bípedes. Tomaram conhecimento de um cirurgião plástico no Marrocos que poderia operá-los. E lá foram e de lá voltaram com aparência de bípedes. Aparência, pois na realidade tinham ainda os cascos, e só conseguiam andar com uma bota especial que os firmava eretos em duas patas. Uma situação perigosíssima, tinham muito receio de que descobrissem o que eles eram de fato. Escondiam-se, passavam constrangimentos, incômodos, mas estavam satisfeitos, poderiam ter uma vida humana normóide.

A mãe de criação de Tita faleceu. Com a herança deixada por ela, puderam se estabelecer em São Paulo, onde Guedali abriu uma bem sucedida firma de exportação e importação e fez amizades no meio judeu. Bem estabelecidos financeiramente, com amigos, morando numa casa confortável, vieram os gêmeos totalmente humanos. E a vida normóide assim transcorria, com um sobressalto aqui outro ali, mas nada grave.

O casal fazia questão de esconder de todos a verdade sobre suas origens de seres mitológicos. Não que depois de bípedes começassem a entrar em conflito com o que eram antes. Não que começassem a criticar os centauros, a mitologia, os cavalos, ou o que fossem antes da “normalidade”. Não. Sentiam até saudades da antiga vida de centauros. Sentiam que no íntimo eram centauros, fizessem o que fosse para alterarem isso.

E normóides viviam iguais aos outros humanos normóides, até que um fato (que não vou contar aqui para não contar o livro inteiro) abalou o casal a ponto de Guedali tentar reverter a normalidade. Ele voltou ao Marrocos, procurou o cirurgião plástico, queria voltar a ser um centauro quadrúpede, pode?

A vida normóide para um ser com alma de centauro gerou muita pressão, e o centauro interno de Guedali reivindicou vir de novo à tona. De novo a vida de centauro, de cavalo, de bicho livre pelos campos, sem as pressões da vida humana convencional.

Desculpem-me, sei que ao comentar livros e filmes conto quase tudo, mas tento não contar tanto. E contarei o final do livro, superficialmente. Quem ainda não o leu, e não quiser saber agora o final, não leia mais nada.

Tita, em conversa com uma amiga no restaurante tunisino Jardim das Delícias, em São Paulo, revelou que Guedali, na realidade, não era um centauro. Guedali nunca foi um centauro, mas a vida toda se imaginou um centauro, numa autoimagem falsa de si. Um desvio de perspectiva, um entrave de percepção.

Das mais variadas formas, pessoas constroem suas autoimagens, alguns têm consciência disso, outros se identificam com a autoimagem a ponto de não se reconhecerem de modo diverso do que foi idealizado. Mas se imaginar centauro chega a extrapolar a fantasia. E Guedali, piamente, acreditava na fantasia que criou.

A capacidade imaginativa humana é uma grande dádiva, mas também pode gerar muita confusão, como no caso do simpático “centauro” Guedali.

6 comentários:

João Maria Ludugero disse...

Prezada Ana Lúcia,
Boa tarde!
Que bom estar aqui, cheguei e, de tanto encanto, espaçoso que sou, já fui ficando, tô dentro, te seguindo. Nem poderia ser diferente, pois amei de paixão seu cantinho maravilhoso. Obrigado por me visitar. Adorei seus coments. Volte sempre, pois a casa é nossa! Será um prazer tê-la por lá, a fosforescer meu site, nem que seja com um simples Bom Dia!
Também moro em Brasília, há 27 anos. Adoro esta cidade. Mas sempre visito meu querido Rio Grande do Norte (Sou potiguar). Que bom ter te encontrado e poder ser seu AMIGO. Voltarei, pois gostei muito do seu blog, repito: Formidável!!!
Forte abraço,
João Ludugero

Paulo Laurindo disse...

Que beleza. Conheci o talento do Moacyr Scliar ao ler Introdução à Prática Amorosa, um livrinho juvenil. Grande contador de histórias. E você não fica a dever. Ao ler o post sobre o conto o Espelho e este, vejo que os dois tem uma ligação. Gosto disto. Você está a nos conduzir por caminhos úteis a uma investigação sobre as nossas percepções, de modo poético, estético e ético. É isto que me faz acreditar que a Literatura tem grande responsabilidade no nosso processo de cura civilizatória.

Ana Lucia Franco disse...

Oi, João, bem vindo, ainda não comentei no teu blog, mas farei em breve, retribuindo tão simpática visita. Volte sempre e muito obrigada pelos elogios..

Ana Lucia Franco disse...

Oi, Paulo, o conto O Espelho e o livro O Centauro no Jardim têm uma ligação que se refere à percepção que é a "alma interna" a que se referiu Machado de Assis. Sim, também acredito que a literatura tem essa função, como arte que é, a medida em que amplia os horizontes de nossa aventura existencial. Grata pela visita, bjs.

CESAR CRUZ disse...

O Centauro do Scliar é de fato um livro sensacional. Um universo paralelo do próprio esforço humano para se adaptar às exigências do mundo, esse mundo tão cruel e vil.

Parabéns pela bela resenha!

bjo
Cesar Cruz

Ana Lucia Franco disse...

Oi, Cesar, é um livro supreendente, elaborado por um escritor que antes de intelectual era um "carpinteiro" de palavras, e a metáfora é essa, aliada ao fato de que inadaptabilidade pode ser uma mera "criação". Bjs, obrigada pela visita!