quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Flores


Na infância, eu gostava muito de um brinquedo que não era exatamente um brinquedo: o caleidoscópio. Meus pais nos levavam à torre de televisão, em Brasília, onde até hoje existe uma feira de artesanato e lá eram vendidos caleidoscópios, o que não se encontra mais. O caleidoscópio é uma espécie de cilindro em que se encostava o olho numa das extremidades e se viam no fundo várias pedrinhas coloridas. À medida em que se rodava o cilindro, as pedras se rearranjavam e formavam novas mandalas. Sempre que se movia o cilindro, podia-se olhar as pedras de modo diferente.

Cada vez que eu ia à torre, ganhava um caleidoscópio diferente. Meus pais se comoviam com meu interesse pelo brinquedo. Havia em casa vários caleidoscópios. Talvez minha mãe guarde algum caleidoscópio em seu quartinho de lembranças das quais ela não se desfaz. Lá estão meus papéis de carta, primeiros diários, cadernos com poemas, fotografias antigas. Sinto que em algum lugar daquele quartinho há um caleidoscópio.

Contei para Bia, minha filha, sobre meu interesse por caleidoscópios quando ela me disse, ontem, não compreender a morte. Porque aquelas pessoas todas morreram daquele jeito, mãe? Perguntou-me se referindo ao apocalipse na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que assombrou o mundo.

Disse a ela que a morte talvez seja um giro de caleidoscópio em que tudo se rearruma de modo diferente. Não há um fim, não pode haver. Tudo pode estar rearranjado, ou no caminho de se arrumar de outra maneira.

E os familiares dos mortos, muitos deles transtornados pela perda. Compreensível. Interromper o convívio com um ente querido em condições trágicas pode doer muito.  Não é suficiente dizer: sigam adiante. Ou: sua dor só piora a situação de seus filhos, estejam eles onde estiverem. Procurem não doer, e sim compreender e liberar amorosamente suas crianças para novas realidades. Talvez melhor não dizer nada, as palavras parecem pequenas, defeituosas, incapazes numa situação dessas. Por outro lado, podem, nas entrelinhas, conter algum elixir que amenize. Algum lenitivo semântico.

Também para os parentes dos mortos pode caber a metáfora do caleidoscópio: procurar olhar as coisas de outro modo, girar o cilindro e rearranjar as pedras pode ser entrar em contato com a morte sem o signo da dor a que ela está associada. Um acontecimento assim abre uma bifurcação: a dor e a saudade pelo resto da vida ou uma nova compreensão da existência, sem tantos apegos. Pode ser uma grande chance de reformular valores e pensamentos obsoletos, chance de transformação existencial. A morte transforma tudo. Mesmo assim, há quem sequer ouse pronunciar o nome "morte" para não atrair maus agouros que certamente não atingiriam um ser fortalecido e consciente.

Ontem vi minha querida Madalena, em intenção, mandar flores às pessoas que morreram em Santa Maria e, principalmente, a seus familiares. Perfumou-se o ambiente. Despertou-me a vontade de teclar sobre isso aqui no blog e também mandar flores pela internet. Estamos todos interligados, quem sabe. Quem não gosta de flores, quem não se encanta.

Quando minha filha me disse não compreender a morte, a primeira coisa que respondi foi que talvez a morte não exista da forma que é usual se acreditar. Observei seu semblante e percebi o quanto a mente dela está formatada pela ideia da morte que domina nossos valores e conceitos. Apesar de ter uma mãe que nunca incentivou este tipo de mentalidade. Só que a partir de nossa conversa, foi plantada uma sementinha e algo começa a germinar. 

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