terça-feira, 16 de abril de 2013

A bruxa que conheci

Conhecer uma bruxa pode ser marcante. Não era o silêncio ou o olhar o que ela tinha de mais especial. Nem mesmo o porte de rainha ou guerreira Viking perdida num tempo que não era dela. O fato é que ela criou seu próprio tempo, tão diferente do tempo que já existia pronto. E ali se aconchegou e aconchegou várias mulheres em busca de um outro tempo. Um tempo mais feminino, mais circular, telúrico, colorido, ritmado, alegre. Um tempo de irmandade feminina. De sacralidade baseada em parâmetros femininos. As mulheres buscavam religiosidade. Não a religiosidade convencional. E ela estava no lugar certo, na hora certa.

Algo que impressionava nela era a simplicidade mesclada à elegância natural. Ela podia estar na frente de coisas corriqueiras e nunca dava um veredicto precipitado sobre nada. Tudo era olhado com cuidado, parcimônia, equilíbrio e bondade. Depois descobri que ela era forte e por isso podia passar pelas coisas sem precisar se apropriar delas por meio de certezas, de rótulos, de verdades duvidosas ou baseadas em conceitos pré estabelecidos ou invencionices ansiosas. Ela podia olhar as coisas de vários ângulos, a verdade pode ter várias nuances. É preciso força para compreender isso.

Recente, lembrei-me de vinte anos atrás quando uma amiga me convidou para conhecer a bruxa. Sorri. E existem bruxas? Nunca fui desconfiada e adoro coisas exóticas. Mesmo naquela época em que eu era cética, o que hoje não sou. Não poderia ser. Eu desconhecia que aquele encontro marcaria minha vida para sempre, embora não tenha efetivamente feito parte do grupo por esses anos. Acompanhava de longe cada lance.  Tinha um caminho todo pessoal a transcorrer. Era como se compartilhássemos, mesmo sem eu estar presente, ou estando presente tão poucas vezes.

O fato é que a bruxa morava ao lado. Sim, ao lado de onde moro. Há quem diga que não moro, escondo-me. Com relutância parei aqui há quase vinte anos. Naquela época, queria a cidade, o mafuá, o burburinho. Hoje sei que não poderia ter ido para outro local. Olhando o percurso de onde se iniciou, vislumbro a razão transcendente de tudo. As coisas são conduzidas e se conduzem também muitas vezes à nossa revelia e só depois de muito tempo o movimento mostra a sua razão de ser e ratifica que nossa pequena vontade, quando não está em consonância com essa razão de ser, nada é.

A bruxa morava ao lado, só alguns passos e pronto. Estávamos cara a cara. Ela com suas sombras esclarecidas, sua bagagem descoberta. Eu com uma bagagem ainda a descobrir. Os percussos eram distintos.

Naquela época, há vinte anos, ela iniciava seu grupo feminino. O grupo cresceu e existe até hoje, mesmo sem ela estar presente. Devo uma visita a ele. Ah, tempo, tempo. Tenho amigas ali. Ela partiu para outra cidade. Recolheu-se à discrição e ao anonimato. Seu trabalho ecoa e ecoará sempre. Suas sementes deram bons frutos porque germinaram num campo de amor, solidariedade e disposição para servir.

Não pensem que bruxas são sempre metidas a sabichonas, exibicionistas, tagarelas, encrencadas com seus demônios particulares. Perséfones infelizes forçando a barra para serem Afrodites. Nada disso. A bruxa que eu tive a felicidade de conhecer era culta e intelectualizada. E sempre se ocupou positivamente com os outros. Não era de perder tempo com bobagens. Desenvolveu importante trabalho assistencial junto a comunidades carentes, além de seu grupo de mulheres que precisavam se sentir alguma coisa. Muitas delas, convictamente, se dizem bruxas hoje em dia. Despertaram o lado bom disso. O lado construtivo, equilibrado, terno. Sem o grupo, talvez não fosse assim para muitas delas. Puderam assumir sua condição, sua realidade interior, com o apoio amoroso de uma mulher especial, que ajudou a sedimentar uma estrada hoje trilhada por outras mulheres que saíram do lugar comum e pouco significativo de suas religiões convencionais e despertaram para formas alternativas e femininas de religiosidade. Isso as agasalhou, as fortaleceu.
 
Sempre que preciso me reconciliar com o arquétipo da bruxa, recorro às lembranças de vinte anos atrás, quando cheguei até a casa daquela bruxa e fui recebida com um abraço afetuoso. Dancei no plenilúnio. Tomei sopa de abóbora e salsinha dada gratuitamente no final dos encontros. A lembrança da solidariedade, respeito e carinho que pode se estabelecer entre as mulheres, mesmo entre as bruxas. Aspectos que são consectários de uma criatividade bem empenhada e da felicidade natural que decorre do amor.

Nenhum comentário: