domingo, 29 de dezembro de 2013

O quadrilátero azul


Um quadrilátero pintado de grafiado azul no início da da L2 sul, em Brasília, talvez nem chame muita atenção de quem passa por ali. Este local faz parte da minha história, da minha adolescência. 

Entrei ali pela primeira vez antes dos quinze anos de idade, por pura curiosidade. Não imaginava que seria para sempre. Eu, católica praticante, assistia missa na Igreja Dom Bosco todo domingo. Mas aquele quadrilátero que, naquela época não era azul, era branco, chamava-me atenção. Aguçava-me a curiosidade. Era uma Casa Espírita. Presenciei muito preconceito em relação ao espiritismo por parte de padres católicos. Poderia ter muito receio do quadrilátero. Mas sempre me pareceu tão simpático, alegre. 

Um dia, depois da aula, resolvi ir até lá, entrar. Estava com uma amiga chamada Adriana. Era início de uma tarde ensolarada de quarta feira. Esse dia nunca mais me saiu da mente e posso, hoje em dia, reconstituí-lo em detalhes. 

Nos sentimos praticando algum delito. Saímos do Colégio Dom Bosco,  descemos o eixão, o eixinho, avenidas centrais de Brasília, correndo, correndo muito, sem pensar  no que estávamos fazendo.  Chegamos. Olhamos para um lado, para o outro para garantir que não seríamos vistas entrando ali, na Casa Espírita. Assistimos a uma palestra, depois tomamos um passe. Gostamos. Nos sentimos bem. Não vimos nada de mais. Nenhum espírito, nada. Adriana me chamou atenção para um cartaz que convidava para a juventude espírita. Retornamos.

Passamos a frequentar regularmente a juventude espírita. Havia muitas pessoas legais ali. Fizemos muitas amizades. Havia muitos eventos, encontros, acampamentos, piqueniques, festas. Frequentamos aulas de violão, de teatro. Dona Irene Carvalho, fundadora da Casa, é escritora, dramaturga e membro da Academia Brasiliense de Letras. Uma das pessoas mais extraordinárias que já conheci na minha vida. Eu não precisava dizer nada, ela sabia tudo o que se passava comigo e só com um olhar me confortava. Era assim com todos. Quantas pessoas esta mulher auxiliou em sua vida, com extrema caridade e amor. Um exemplo mesmo. 

Finais de semana, ajudávamos na creche Nosso Lar, que existe até hoje. Nos sentíamos úteis e isso nos fazia muito bem. Preferíamos estar ali, na Casa, do que no shopping, por exemplo.  Ou nos descabelando pelos Menudos.  Nos tornamos adolescentes diferentes. Adriana mudou-se para São Paulo e até hoje é espírita. Eu também sou, embora tenha me afastado da Casa e do espiritismo por algum tempo. 

Foi ali mesmo, naquele quadrilátero, que eu contestei o espiritismo e disse que não voltaria mais. Mas voltei. E lá estou como se ali tivesse firmado um compromisso. A realidade é a ponta de um iceberg.

Outro dia, entrei rapidamente na livraria para entregar livros novos que chegaram da FEB. Dona Irene estava sentada nos fundos. Está muito idosa. Me disseram que estava com problemas de visão. Eu não a vi. Pois Dona Irene me viu entrar. Chamou-me. Levei um susto, porque foi um espécie de grito forte. Ela está com a voz bem firme. 

Sente-se aqui, disse em tom de ordem. Cumpri imediatamente. Nunca mais se afaste, menina, você tem muita sorte, mas merecia mesmo umas palmadas de vez em quando. Eu sorri.  Chorei. A mão firme de Dona Irene desceu pelos meus cabelos, pela minha face. Ela chorava. Precisamos muito de você, talvez mais do que você de nós, ela me disse. Fiz que não com a cabeça. 

E ficamos o resto do dia de mãos dadas. Nunca precisamos dizer muita coisa uma para a outra. 


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